Odete Machado

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Odete Machado (Foto: Karin Salomão)

Odete Machado (Foto: Karin Salomão)

 

Música clássica. Beethoven, Mozart, Debussy. Rádio Cultura. MPB, samba, chorinho. Acordes suaves encobrem buzinas, motos, sons de freio, de gritos, de gente. Cartazes. “Mais amor, por favor”. “Dança não existe sozinha”. “Do asfalto ao caos”. Pôsteres de filmes antigos, de festivais hippies, frases. Uma vitrine com obras de arte. Mescla de grafite, pinturas, esculturas. Triângulos neon. E livros, milhares de livros. Em estantes, entulhados, em montes no chão. Clássicos da literatura, Dostoievski ao lado de Machado de Assis. Clarice Lispector e José Saramago.

Hoje, a Passagem Literária da Consolação já está consolidada. Mas, em 2005, era um lugar bastante deteriorado. Na época, Odete Machado vendia livros na rua. Um dia, proibiram. Veio a polícia. Tentou pegar os seus livros. “Eu disse ‘não mexe’. Mas ele mexeu. Bati, mordi ele todinho. Foi todo mundo para a delegacia. Pegou os meus livros! Precisei dar umas mordidas, para ele aprender.”

No mesmo ano, ela ficou sabendo de um projeto da subprefeitura da Sé, de devolver vida à passagem por baixo da Av. Consolação. Odete veio, com outros livreiros. “Era tráfico de drogas, morador de rua, lixo, tudo. A gente foi arrumando e mudando a cara da passagem”, diz. Hoje, não é mais um lugar fechado, sujo e amedrontador. As pessoas passam tranquilas, param para ler e ouvir música. “É uma intervenção dentro desse caos que está aí”, clama Odete. Estufa o peito, guerreira, coberta por um vestido fino, florido.

Também é uma vitrine importante para artistas da cidade. A cada mês, uma nova exposição é apresentada. São conhecidos e desconhecidos, que se tornam um pouco mais visíveis. A curadoria é de Odete, que busca incluir todas as nuances da arte urbana. Ela conta que já trouxe até intervenções de teatro e dança.

“Antes, eu precisava pegar artista na calçada. Ninguém queria vir, magina. Agora, tenho agenda do ano todo lotada. São artistas que colaboram com o espaço, com a cidade, com a cultura da cidade”. Ela cita, importante, os artistas que já expuseram na sua vitrine: Carla Caffé, Tersio Greguol, Thiago Mundano, Crânio.

Vê a passagem como exercício de cidadania. “Tem gente que não sabe que livro usado existe, que é mais em conta. Tem gente que tem vergonha de entrar em galeria de arte”, diz, inconformada.

Odete também admira o Beco do Batman, o Museu Aberto de Arte Urbana da Av. Cruzeiro do Sul, o Minhocão. Ela insiste em apropriar o espaço urbano. “A gente devia usar as praças para conversar. O Minhocão tem que ser usado para piquenique, para correr. Abrir o que está fechado e montar ateliê para quem não tem. Não tem lugar para dançar? Se enfia lá, dança!” Gesticula, abana os braços finos, ergue as sobrancelhas. Cada frase é um manifesto, crítica à falta de vida da cidade, expressão de arte urbana.

Odete é formada em fisioterapia e atuou na profissão por anos, em um hospital. Ela também faz pós graduação em dança na PUC. Mas livros são sua paixão. “É meu companheiro, minha família, meu amor. Aprendi e vivi muito por eles”. Está lendo a biografia de Pina Bausch, bailarina como ela. Lê de tudo, mas prefere a poesia de Cristina Cesar, pela sensibilidade e delicadeza. E Clarice, sempre Clarice. Lê, relê e lê de novo seus contos, onde vida nem amor são fáceis.

“A arte tem que existir. Se não existir, meu, sei lá, não sei o que pode acontecer. A arte muda as pessoas. Ela faz com que você saia desse mundo e vá para outros. Pega um livro e você vai embora. Você sai desse tempo. Cria outro tempo.”